terça-feira, 12 de outubro de 2010

guerra fria

Era uma fria tarde de inverno. A neve caía como pequeninas bolinhas de algodão. Alguns flocos ficavam por entre os galhos das altas árvores da floresta. O chão era como um gigante cobertor branco que nada esquentava.
Ele caminhava lentamente e com cautela pela estrada - em função da fina camada de gelo no asfalto, qualquer descuido levaria o rapaz a escorregar. Levava consigo sua mala, já atrofiada depois de tantos meses fora de casa, apoiada no ombro. Já não sentia mais seu peso.
Já não sentia mais frio. Todo esse tempo vivendo naquele mundo tão cruel, porém, fizeram dele uma pessoa extremamente fria por dentro.
Já não chorava mais.
Mas isso é necessário para assistir às cenas que teve de assistir.
E caminhava.
Já não sentia suas pernas mais. Continuava caminhando inconscientemente, com seus pés se arrastanto, involuntários, sob seu corpo.

*

Sua esposa havia ficado para trás e, junto com ela, a pequena filha, que havia há pouco completado seu quinto ano de vida.
Ele não pôde estar presente no seu aniversário.
Escreveu cartas, que nunca chegaram ao seu destino.
Depois de certo tempo, havia desistido de manter contato com a família. Tentou convencer-se de que dita família nem ao menos existia; de que eram apenas frutos de sua imaginação ou, talvez, personagens de algum dos muitos livros que havia levado, lido, relido e queimado para que suas malas pesassem menos.
Como não sabia se voltaria para casa, chegou à conclusão de que sofreria menos dessa forma.


*

Caminhava.

*

Lembra-se bem do dia em que sua filha havia, supostamente, fugido de casa. Duas horas depois, retornou, trazendo consigo uma cesta de palha em cujo interior estavam dezenas de pequenas flores de uma imensa variedade de cores e formatos, e a entregou aos seus pais.
Lembra-se bem de como era bonito o brilho do sol nos cabelos loiros da menina nesse dia. Lembra-se do mais belo e sincero sorriso já visto em uma mulher, estampado no rosto da sua no momento em que recebera as flores. Lembra-se de como eram uma linda família.
Lembra-se, mas não deixa-se lembrar.


*

Caminhava. E, como um milagre, avistou ao longe uma cabana de madeira. Fumaça saía da chaminé. Não se sabe como, mas, de repente, encontrou forças que não sabia que existiam e correu até lá.
Ofegante, bateu na porta. O dono da casa o convidou para entrar. Ofereceu chá, cobertores e roupas secas, num esforço desesperado para aquecer o pobre soldado. Seu visitante, porém, pediu apenas para usar seu telefone.
Não sabe por que mas, sem pensar, seus dedos digitaram tão naturalmente o número de telefone daquele lugar que ele havia um dia chamado de sua casa.
-Alô?
E, nesse momento, ao ouvir a voz de sua amada esposa, sentiu sua garganta fechar, ao mesmo tempo que uma tímida lágrima escorreu do canto de seu olho pela sua face gelada. Deixou-se lembrar.
Deixou-se lembrar dos rostos das pessoas que amava, de domingos no parque, de feriados na lagoa, de todos os momentos em família que havia tanto lutado para esquecer.
E, como uma reação em cadeia, inundou-se em lembranças e, com cada lembrança, veio mais uma lágrima. Lágrimas que, uma por uma, lentamente derreteram o gelo que havia-se formado ao redor de seu coração.
A guerra destrói vidas e famílias de mais maneiras do que uma só.
Agora, queria mais que tudo voltar para casa. Mas não podia. Tinha seus deveres.
Agora, lembrou o motivo pelo qual havia tentado esquecer.
Agora, ele chora, pois não queria estar lutando nessa guerra fria.

sábado, 2 de outubro de 2010

o ser humano me assombra

Às vezes, odeio o ser humano.

O ser humano possui o péssimo hábito de confundir boatos com verdades inegáveis. E quando um boato começa a se espalhar, é como se uma manada de predadores, atraída pelo cheiro do egoísmo e da má índole, se reunisse em um plano maléfico para derrubar a pobre presa de que nada sabe.

Odeio quando distorcem uma história a fim de torná-la mais dramática e atraente aos ouvidos dos espectadores, que ficam aguardando uma fofoca como se fossem urubus devorando os restos do que um dia já foi um animal de verdade. Odeio a expressão de prazer que se estampa tão claramente no rosto do ser humano quando fica sabendo de uma novidade ou, principalmente, quando repassa essa informação a outro carnívoro sanguinário, rindo como hienas que se alimentam da carcaça da pobre vítima de quem falam.

Tento defender, mas quem sou eu? Uma mera borboleta com um bom coração que acaba assistindo à cena de camarote sem nada poder fazer.

Odeio quando julgam uma boa pessoa sem a previamente conhecer.

Odeio odeio odeio.


Título retirado do livro "A Menina que Roubava Livros" de Markus Zusak.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

diálogo

Sentia-se tão só.

Acordava religiosamente às seis e meia; sete aos finais de semana. Ia ao encontro de seus deveres diários e retornava à sua casa para, mais uma vez, adormecer no sofá da sala enquanto assistia às reprises de seus seriados antigos favoritos.

Gostava de ler. Às vezes, alugava um livro e o trazia para casa. Nesses dias, adormecia no sofá da sala enquanto lia romances de Sidney Sheldon. Às vezes, porém, ia à biblioteca e ficava lá mesmo, lendo.

Estava sempre tão vazia, assim como a biblioteca.

Ficava, às vezes, a tarde toda lendo, sozinha e só.

Lembra-se bem de uma tarde em que logo percebeu algo de diferente ao dar aqueles tão conhecidos passos pela grande porta de entrada da biblioteca municipal. Nesse dia, havia outra pessoa lá, sentada, lendo, sozinha, e, aparentemente, igualmente só.

Retirou um livro qualquer e sentou-se junto à pessoa, do outro lado da comprida mesa retangular. Deu-lhe um polido “bom dia”, retribuído com um educado sorriso. E leram.

Tantas palavras, nenhuma falada. O melhor diálogo de suas vidas.